Lá
fora, enquanto atravessava a rua, cruzei-me com um autocarro quase vazio. Uma
senhora, com ar pendente, esboçava movimentos com a boca. E a mão fingia
garatujas no ar. Devia levar uma conversa governada de interesse com o senhor
condutor. Toca o telemóvel e a dúvida absorve uns quantos. As massas a
funcionar com as maçãs. Soa e somos o mesmo. Estou numa espécie de fila – um tanto
desordenada, outro tanto desordeira - num lugar cansado, cujo ar está saturado,
com o meu casaco comprido, aos quadrados desenhado, os óculos graduados
colocados, os de sol na gola dobrada do casaco de malha grossa presos.
Desliguei a chamada há instantes, a minha irmã mais nova a trazer novidades, no
seu discurso sempre vestido de pressa, genuíno e de menina travessa. Entre
pensamentos, reparo na senhora que está ao meu lado. Quase inerte, numa apneia
que me permiti diagnosticar. O olhar, quase baço de admiração, está focado -
pasme-se - nas minhas meias. Ou peúgas. Conforme a nação de cada um. Perco-me,
com alguma facilidade, nas nomenclaturas. Nisto, arqueio a sobrancelha, como se
fosse tipo para esse ensaio. Levo, instintiva e imediatamente, os olhos às
ditas. E rio-me. De mim e para mim. Espreitam, dinâmicas e de humor comedido,
entre o que trago calçado e a dobra das calças. Não são as mais atrevidas que
tenho, quis contar-lhe – à senhora, claro – mas fiquei tímido. São mesmo
triviais, talvez a cor lhes torne especiais. Enfim, os nossos olhares cruzaram-se.
E chega, na minha direcção, vinda do fundo da neblina que são aqueles olhos, a
estupefacção. Fiquei na dúvida, tratar-se-ia de vergonha por eu ter percebido o
delito ou, cheia de verdades sobre a arte de bem trajar reprovou as minhas
sossegadas meias. Ou peúgas. Assim levei a manhã, numa ambiguidade sem
precedentes.
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