20.2.18

Tem nome de menina traquina.

A televisão na frente, fina e elegante, como se vê agora, quase novidade por ali. A estante datada, na cor da madeira bem escura. Os bibelôs a compor, a fingirem-se moldura. Os cristais imaculadamente dispostos. Aqui e acolá os afamados naperões, ora na mesa de centro, ora na mesa de apoio, também na de jantar que fica mesmo no cantinho da sala. As flores naturais, frescas e regadas, estrategicamente colocadas, para que nem o sol lhes falhe. Os sofás cobertos, com finos trapos, para impedir a destruição do tempo. Não funciona, mas tempera a ansiedade. Como o telefone, que sossega sobre uma das já faladas rendas. Com números grandes, para afugentar a vista desgastada e antecipar a chamada. Reserva-o para a filha que vive longe e para uma situação descontrolada. A filha, os netos e outros que lhe marcam a memória, vestem as molduras. Várias, variadas. Cada uma da sua nação, mas não faz confusão. Numa, o marido. Paixão da juventude, amor da vida inteira. Não rasgou nem uma fotografia dele. Trá-lo para aquele espaço e isso conforta, conforta-a. Foram anos sem conta. Dormiram juntos mais do que souberam o que era não partilhar o leito. Ainda ruboriza, quando pensa na primeira. E sorri. Nas costas, quase colado ao sofá comprido, um espelho grande. Reflecte tudo. Até o cume do seu cabelo bem penteado. Aquece-se com um lenço nada trivial. A alma afaga-a com a leitura. Aprendeu tarde, mas guardou para que não a largue até ao último dos seus dias. Prefere histórias reais, biografias. Na frente, a televisão, fina e elegante, como se vê por aí, recém-chegada aqui. Fixa os olhos na dita, abre a boca para ensaiar o discurso, mas perde-se. Larga-se num pranto, que foi bem mais rápido, roubando-lhe as palavras. Já na noite anterior havia ficado atónita, a observar. A violência nas ruas. A inquietude que parece não ter termo. A gratuitidade com que se desiguala o outro. Fixa os olhos, pejados de lágrimas, esquece-se de recompor o rosto molhado e deixa fugir que é uma dor. Física e espiritual. E não desminto, é pernicioso. Agradeci-lhe a visita, poder sentar-me e trocar uma prosa que foi uma delícia. Hei-de voltar. Vou voltar. Que promessa feita, não tem como não ser cumprida. Um beijo grande e boas leituras.

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